Isabel Rei Samartim
guitarrista e professora
Nem sempre é fácil comprar livros e informação em português a partir da Galiza. Como professora galega, a morar em Compostela, a aventura da aquisição de cultura portuguesa é uma fonte inesgotável de anedotas. Por isso, a Glosas tem sido para mim uma janela aberta à música portuguesa de enorme valor, pois nem sempre é fácil, mesmo na era da internet, termos conhecimento da nossa história comum atlântica.
De ótima edição, a Glosas chegou-me sempre no momento certo e cheia de maravilhas que não teria conhecido por outros meios. Para mim são fundamentais os trabalhos históricos sobre músicos portugueses, desde Dom Dinis até Carlos Franco, passando por Frederico de Freitas e Fernando Lopes-Graça. A Glosas oferece com a passagem do tempo uma constelação de compositores que na Galiza precisamos de conhecer mais, como Frei Manuel Cardoso, Gaspar Fernandes, Carlos Seixas, Marcos Portugal, Vianna da Motta, António Fragoso, Francisco Eduardo da Costa, César Guerra-Peixe, Ricardo Ramalho, Fernando Corrêa de Oliveira, Gabriel Morais de Sousa, Alfredo Keil, Joly Braga Santos, António Victorino d’Almeida, Cândido Lima…
Assim como João Domingos Bomtempo travou relações, em Paris, com o editor e guitarrista de possível procedência galega Salvador Castro de Gistau, as relações galegas e portuguesas, outrora normais, deveriam encher e complementar a nossa cultura comum. Sem elas, a vida é incompleta.
Gostei especialmente dos números dedicados às mulheres músicas, como o tributado à Clotilde Rosa, que veio acompanhado de um antigo número da revista Arte Musical com trabalhos sobre a cantora Angelica Catalani e os concertos em Vila Franca de Xira, que também me levaram às pesquisas sobre Agostinho Rebel Fernandes, guitarrista que depois publicaria dois métodos de guitarra em Lisboa. Os nomes e trabalhos de Constança Capdeville, Elisa Lamas, Valdilice de Carvalho, Carla Caramujo, Maria João Serrão, Madalena Moreira de Sá e Costa, Guilhermina Suggia, Maria Ana Josefa, Nella Maissa, Sofia Lourenço, são do maior interesse e precisamos ainda de mais informação sobre estas e outras mulheres cuja dedicação à arte musical foi, tem sido, e é, centro das suas vidas.
Adorei também as entrevistas ao João Paulo Santos sobre a criação de música portuguesa e a realizada à orquestra Divino Sospiro, especializada na música do século XVIII. As informações sobre música brasileira: a umbanda, Régis Duprat, Gilberto Mendes, as irmandades em Minas Gerais, José Siqueira, as viagens ao Brasil. As recensões dos ensaios do Louis Saguer sobre a defesa da música portuguesa, o estudo da correspondência entre Lopes-Graça e Eugénio de Andrade, o artigo sobre a relação entre Lopes-Graça e Guerra-Peixe, sobre Saramago e a música…
São um farol orientativo as secções de discografia. E aliciantes as descobertas na Biblioteca Nacional, as pérolas da música antiga em Portugal e o laboratório de iconografia musical. Para mim foram também importantes, e deviam aumentar, as informações sobre guitarra ou viola, como o artigo de Manuel Morais sobre Emilio Pujol na sua etapa lisbonense e as notas sobre a tiorba de Matheus Buchenberg.
O que realizou ainda a Glosas nestes anos foi entrar em contato com autores e autoras galegas e abrir espaço para as suas colaborações. Eu própria tive a honra de apresentar o disco gravado com a música para viola da Madeira e adorei ler o artigo do meu colega José Luís do Pico Orjais sobre o seu estudo da música de autores portugueses em Pontevedra. Explorar as relações galego-portuguesas na música, fora do conhecido âmbito medieval, é do maior interesse.
Por palavras do António Pinho Vargas, publicadas no número da Glosas dedicado à sua obra, “não tenho nenhum interesse em discutir nenhuma questão estilística, técnica ou mesmo estética”. Com efeito, não é essa a questão, mas o conhecimento e divulgação da música portuguesa, empresa para a qual, felizmente, nasceu o MPMP. Longa vida à Glosas!